A Grande Jornada

1 - O Despertar da “Consciência”.

     Quando da fecundação de um óvulo por um espermatozoide temos início a existência de um novo ser. Este ser microscópico, quase um não ser, já inicia sua jornada existencial dotado de características genéticas que herdou daqueles que o geraram e, a partir de então se alimentando do meio no qual foi lançado vai desenvolvendo-se. Um novo organismo vai se estruturando com suas células, moléculas, órgãos e vai se adaptando para enfrentar os obstáculos que vai encontrar em sua vida. Alguns órgãos vão sendo definidos para exercerem diferentes funções no organismo que acaba de nascer; entre os quais, os órgãos dos sentidos que permitem o contato com o meio exterior e o cérebro que lhe permitirá o desenvolvimento da memória, da palavra e do pensamento conceitual. Não é necessário dizer que estamos nos referindo apenas ao homem, não a outro animal ou outra qualquer forma de vida, apesar de que muitas similaridades podem ser constatadas.
      Voltando ao nosso exemplo, o desenvolvimento orgânico (físico), que pode ser constatado por qualquer um é o seu exterior que vai se modificando; mas, ao mesmo tempo, acontece também o desenvolvimento do interior, é o desenvolvimento do psíquico (das emoções, das simpatias e antipatias, das preferências, da memória e da capacidade abstrativa) que se realiza ao mesmo tempo em que o organismo se complexifica.
      O físico e o psíquico são duas faces de um mesmo organismo, como seu exterior e o seu interior. Sua natureza é corporal; postular uma realidade espiritual para as atividades psíquicas é desnecessário.
      Ao desenvolver-se o novo ser vai tomando consciência, através dos sentidos, da existência do meio em que está inserido e de sua dependência do mesmo; vai também, sentir-se inserido, mas distinto do meio no qual existe e, de maneira um tanto confusa, toma consciência de seu próprio organismo como um todo dentro deste ambiente.
      No interagir com o meio e com outros entes que lá encontra, vê-se perante dilemas ou opções: escolher uma entre duas ou mais probabilidades de ação: ao fazê-lo exerce de modo ainda incipiente a liberdade, que não possui, mas que deve conquista-la. Este é o primeiro passo para ser livre; é também, o surgimento de uma nova pessoa.

 2 – A Procura pela Essência.
    
 Em presença de determinado ente, surge-nos a pergunta: qual a sua natureza, ou melhor, qual a sua essência? Para respondermos esta pergunta com referência ao nosso exemplo, devemos primeiro considerar o que constitui a essência de um ser.
      Numa perspectiva tradicional, a essência é o que faz um ser, ser tal ser; assim com relação ao homem chegou-se a definição de que este é um animal racional. Ora, esta definição pode ser contestada e permanece como um conceito universal, simples palavras como dizem os nominalistas, mas nada tendo a ver com a realidade concreta. Chega-se a mesma abstraindo-se da noção de homem suas qualidades acidentais, suas relações com outros seres e mesmo sua existência concreta. O que obtemos é um conceito vazio que se aplica a todos os homens e a nenhum homem concreto; o mesmo acontece quando pela redução fenomenológica colocamos entre parênteses a existência e as diferentes características que se agregam ao sujeito. Esta essência, que eu chamo de vazia, pode ser útil para o raciocínio abstrato ou conceitual, mas não diz nada a respeito do ser concreto, existente. No pensamento oriental, muitos pensadores, entre os quais Buda, negam a existência da essência do homem, negando sua realidade pessoal.
     Ao considerarmos um determinado ser em sua concretude (como em nosso exemplo) devemos não abstrair, nem colocar entre parêntesis sua existência e tudo o que o caracteriza e o define, mas procurar conhecê-lo holisticamente em seu dinamismo e assim encontraremos sua essência plena, sua essência concreta e pessoal.
     Retornando ao nosso exemplo, quando o óvulo é fecundado pelo  espermatozoide um novo ente é lançado na existência, não é ainda um organismo completo, mas um quasi-não ser dotado de caraterísticas herdadas de seus pais e que começa a receber a influência do meio no qual foi lançado e a interagir com esse meio, tanto passivamente dependendo do ambiente, como ativamente modificando-o. Com o correr do tempo, vai adquirindo caraterísticas próprias, tanto físicas como psíquicas e torna-se adulto, após o que começa a definhar a se desestruturar e encontra seu final, encontrando a morte. Concepção, nascimento, crescimento até a idade adulta, declínio, morte é inevitável para todo organismo, seja humano, seja animal.       
      Em seu caminhar pela existência o homem vai tornando-se consciente do ambiente em que vive e de si próprio e percebe-se como quem está imerso no ambiente, mas ao mesmo tempo destaca-se do ambiente e entra em oposição com o mesmo, reconhece-se como um “Eu” perante aos outros entes. Um “Eu” que tem caraterísticas próprias e que embora dependa é independente do ambiente em que vive. Percebe também a existência de outros entes que se situam neste mesmo ambiente e com os mesmos estabelece uma relação, na qual ele é o sujeito e os demais os objetos dos quais se serve, mas que podem também tornarem-se perigosos.
     Entre estes outros entes, encontra alguns que pelas suas características, iguais as suas, lhe despertam atenção especial. È quando acontece o encontro com o “Outro”. Com este(s) enquanto quer transformá-los em objetos, sente que também é transformado em objeto por ele(s). Nasce uma nova relação, baseada na correspondência e na igualdade.
     Neste conscientizar-se e neste relacionar-se, enquanto seu organismo se desenvolve de modo quase automático e instintivo, o novo ser que começa a se desenvolver. se encontra frente a situações que o colocam na obrigação de decidir entre duas ou mais alternativas e, ao fazê-lo começa a agir livremente e a construir sua personalidade que é sua Essência plena e concreta. Personalidade que não possui ainda, mas que deve construir passo a passo durante toda sua existência e pela qual se tornará responsável.
     Resumindo: quando por ocasião da concepção o novo ser é lançado na existência, não possui uma personalidade completa e totalmente desenvolvida, pois esta não lhe é dada, o que lhe é inerente é a capacidade de desenvolver sua própria personalidade com as condições, quer hereditárias, quer ambientais que condicionam o seu organismo e o seu viver.
      Sendo a personalidade a essência da pessoa humana em sua concretude, podemos dizer que a essência de cada homem não é algo que lhe é dado, mas o que o próprio homem constrói em seu existir. A essência do homem será tanto mais rica e complexa dependendo do próprio homem.

3 – O Encontro com o Outro: “O Diálogo”.

       Ao tomar consciência da existência de outros seres que lhe são semelhantes, o homem com eles estabelece uma relação que pode ser de vários tipos. Vamos refletir em três tipos básicos: indiferença, conflito ou comunhão.
       A relação é de indiferença quando apenas percebemos a existência de outro ser e pouco ou quase nada nos influência ou por nós é influenciado. Como exemplo de uma relação de indiferença absoluta  pode-se considerar quando vemos passar diante de nós um transeunte e apenas vemos se é alto ou baixo, gordo ou magro, bonito ou feio, etc., mas nada sabemos de suas características, nem mesmo seu nome.
       A relação também é uma relação de indiferença, embora relativa, quando nos relacionamos não com a pessoa do próximo, mas com sua função ou papel: por exemplo; o padeiro, o médico, a doméstica, o professor e outros. Nestes casos, o que nos interessa é o que ele faz e não o que ele é. Para nós é apenas um objeto ou um profissional que poderá nos servir se necessitarmos de suas habilidades e conhecimentos.
      A relação é de conflito quando sentimo-nos ameaçados por sua presença e nosso relacionamento é dominado por sentimentos de confronto, de disputa, de inveja, de ciúmes e outros que provocam a separação e a disputa.
      Este relacionamento não visa às aparências, nem as funções ou papéis exercidos pelo(s) outro(s), mas visa à própria pessoa com quem nos relacionamos. Pode ter início na relação entre irmãos, quando competem pela atenção ou pelo amor dos pais ou, quando querem gozar de privilégios ou querem reduzir o outro irmão (normalmente o mais novo) a seu “escravo”. O mesmo pode acontecer entre amigos ( ou melhor companheiros), quando competem por um lugar de destaque ou liderança de um grupo ou por algum objeto ambicionado por ambos.
      Neste tipo de relacionamento, um quer transformar o outro em um objeto para servi-lo, submetendo-o a seus gostos e caprichos, tornando-o mesmo seu “escravo” sem vontade própria; por outro lado, o outro não aceitando esta situação cria-se uma disputa que pode ser passageira ou pode tornar-se definitiva ocasionando um sentimento de ódio de um pelo outro. Caso um dos dois aceite ser subjugado pelo outro, ele o faz por não poder modificar a situação, mas guarda em seu interior um profundo sentimento de revolta, esperando uma oportunidade para se vingar. Ao submeter-se a vontade do outro, pode também aceitar esta submissão passivamente, anulando-se completamente e despersonalizando-se. Estas atitudes de conformismo com sua “inferioridade” acontecem com mais frequência do que se poderia imaginar.
      Na relação de conflito não existe diálogo, mas quando um aparente diálogo acontece são dois monólogos, através dos quais cada um dos contendores quer submeter o outro. É um diálogo de surdos, no qual  os dois querem falar, mas nenhum quer escutar. A relação de conflito é determinada pelo ódio, nem sempre permanece em palavras ou intenções, muitas vezes resultam em ações práticas, nas quais um quer prejudicar o outro, utilizando mesmo de expedientes escusos, inclusive com falsas acusações e calúnias.
      Nestas relações, o ódio pode gerar violência, até mesmo a morte. Mata-se por qualquer e, sem nenhum motivo. São crimes passionais, assaltos e sequestros seguidos de morte, mata-se até por que o outro é torcedor de outro time de futebol ou, por ser de outra raça ou de outra religião. As guerras e revoluções não existiriam se não houvesse estas relações conflituosas entre as pessoas. Quantas mortes e desgraças não poderiam ser evitadas com a prática constante de verdadeiros diálogos
       A relação é de Comunhão quando sua principal característica é o diálogo, que não existe na relação de indiferença quando não há comunicação, apenas constatação da existência do outro; nem na relação de conflito onde o que impera são os monólogos.
      Nesta relação procura-se conhecer o outro seu nome, seus interesses, suas preferências e, isso se faz através do diálogo, mesmo que este seja superficial. Neste contato criam-se afinidades e simpatias, o outro passa a ser importante para nossa realização; não podemos alcançar nossos objetivos se permanecermos isolados, precisamos do outro, de sua presença e de seu companheirismo.
      Quando nos primeiros dias de nossa existência entramos em contato com nossos familiares e em especial com nossa mãe, dela recebemos alimento, cuidado e carinho. Aos poucos se vai realizando uma ligação que supera a simples satisfação de nossas necessidades básicas, mas, que nos une através de um sentimento de Amor. Assim como o ódio determina as relações de conflito, o amor determina as relações de comunhão.
      O maior conhecimento do outro e a descoberta de nossas afinidades e de objetivos comuns trazem como consequência a colaboração e a parceria em nossas atividades. A relação de comunhão é causa também de sentimentos de mútuo respeito, de ajuda mútua e de participação na alegria com o sucesso do outro.   

      O amor quando concretizado no relacionamento entre duas pessoas, não sendo limitado por interesses mesquinhos e egoístas, se expande em atividades sociais que querem o bem estar e a realização de outras pessoas, através de entidades que visam o combate a injustiça e a dar iguais oportunidades aos menos favorecidos.
     São creches e educandários que cuidam da alimentação saúde e educação de crianças pobres; asilos e recantos que acolhem idosos sem recursos e abandonados por sua própria família; clínicas e hospitais especializados que atendem diversos tipos de enfermidades, tais como câncer, doenças mentais, venéreas, etc.; clínicas de recuperação para drogados e para alcoólatras; e muitas outras entidades, tudo em nome do amor e da humanidade.
     O amor pelo próximo e o combate à injustiça leva o homem a promover e a participar de atividades contra a segregação racial e o desrespeito aos direitos das minorias, sejam elas quais forem. Urge também àqueles capacitados para tal que assumam e concorram a funções quer no governo, quer na Igreja, na imprensa ou em outra qualquer instância que permitam influenciar para que os abusos e os atos injustos sejam eliminados da sociedade.
      Enquanto o ódio provoca a desunião, a morte e a guerra; o amor é causa da união, da vida e da paz. O amor que encontra suas raízes no relacionamento de comunhão entre duas pessoas, não é covarde, mas capaz de sacrifícios, inclusive da própria vida em defesa da justiça e da paz.
      A relação de comunhão que se solidifica e cresce através do diálogo profundo e sincero, no qual as pessoas expõem suas ideias, mas, também escutam as ideias dos outros e, juntos procuram a solução para os seus problemas, é o fermento de comunidades de justiça, paz e amor que se formam no meio da sociedade, com o objetivo de tornarem-na melhor e mais saudável.
     Para dialogar não é preciso um grande conhecimento, nem possuir diplomas ou títulos, só o que é necessário é estar livre de preconceitos; não se considerar dono da verdade, nem querer convencer o outro a todo o custo, como se fosse um adversário a ser vencido. No diálogo é preciso entrar com o espírito desarmado e disposto a aprender e ensinar; a trocar conhecimentos e procurar encontrar juntos a solução para os problemas sobre o que se dialoga. É adquirir novos conhecimentos; é enriquecer sua visão sobre si próprio e sobre os outros.
    É o diálogo o motor que irá possibilitar ao homem a realização de um mundo melhor.

 4 - A Conquista da Liberdade

        Ao nascer o homem não é livre, mas condicionado. A liberdade deve ser conquistada.
     O organismo humano desde sua concepção possui, ao menos potencialmente, três faculdades que irão se desenvolver durante sua vida e que são muito importantes: a razão, que lhe propicia o conhecimento abstrato; a memória, que permite a guarda e a conservação de todos os seus conhecimentos passados e a vontade, que lhe propicia a capacidade de escolha.
     O homem torna-se consciente de si próprio e do meio em que está inserido que apreende através dos órgãos do sentido, do conhecimento instintivo e das faculdades acima relacionadas.
     Quando perante duas ou mais realidades que se lhe apresentam opta por uma delas, isto não prova o ser livre, apenas ser capaz de exercer sua vontade de escolha. Para que haja liberdade, muito mais é requerido.
     A liberdade existe quando o homem conscientemente decide-se por algo que vai empenhar toda sua vida, todo o seu ser. Mas, a liberdade não é absoluta, nem é gratuita; é limitada e condicionada tanto por fatores internos como externos e, para conquista-la demanda muito esforço, garra e determinação.
     A liberdade é limitada por fatores internos. O organismo do homem tem seus limites, por exemplo, não pode voar. Assim também quando ao nascer com determinado sexo, não o pode mudar, por mais que se façam operações, a mudança nunca é total, é apenas aparente.    Tudo o que for decidido sem respeitar os limites do próprio organismo é pura fantasia, não pode ser executado e não pode ser considerado um ato livre.
     A liberdade é também limitada por fatores externos. Nascer numa metrópole, numa aldeia rural ou na selva sempre condiciona o agir dos homens, o mesmo acontece o existir em diferentes regiões que são diferentes entre si pelo clima ou pelo regime alimentar.
    O homem vive em sociedade e da sociedade recebe influências que condicionam o seu agir; é condicionado pela cultura e pelos costumes da sociedade em que vive. Este condicionamento é maior quando consideramos os meios de comunicação social; A TV, o rádio, o cinema, o jornal e a internet condicionam o agir do homem num âmbito internacional. A globalização influencia o pensar e o viver do homem de tal modo que aos poucos vão desaparecendo os lugares para a criatividade, para as tradições regionais e para os talentos individuais.
      Quando o homem toma uma decisão, esta decisão é condicionada por todos os fatores de que falamos acima; no seu decidir e no seu agir, muito o homem deve a seus condicionamentos e as circunstâncias alheias a sua vontade que o levam a agir de determinada maneira, mas, sempre existe lugar para que decida e, embora limitada sua decisão determina sua ação. É livre, na medida em que dependa de seu querer.
      A Liberdade quando exercida na solidão é estéril, para que se robusteça necessita do contato com o(s) outro(s). É através do diálogo que a Liberdade se concretiza.  
      É através do diálogo e respeitando o(s) outro(s) em seu pensar e em seu querer, que somos capazes a tomar uma posição autêntica e livre. A Liberdade é realizada plenamente na presença e em comunhão com o “Outro”.
      Não é em qualquer circunstância, não são nas decisões corriqueiras do dia a dia que podemos afirmar nossa Liberdade, mas, em ocasiões especiais em que empenhamos todo nosso ser e que comprometemos o nosso futuro que podemos dizer que agimos livremente.
      Como exemplos destas ocasiões especiais podem-se citar: a escolha de uma careira, quando renunciamos a muitas possibilidades para nos dedicarmos apenas àquela escolhida; o assumir um estado de vida como, por exemplo, através do matrimônio constituir uma família ou, pela profissão religiosa ingressar na vida consagrada.
      Quando tomamos estas decisões ou outras semelhantes, sabemos que a elas vêm atrelados muitos deveres, dificuldades e obstáculos que deverão ser assumidos, embora nem sempre conscientemente.
      A decisão livre deve sempre ser consciente e traz consigo a responsabilidade pelo que decidirmos. Ao tomarmos uma decisão, somos livres pelo que e na medida em que esta decisão depender de nossa Liberdade, no que é consequência de fatores condicionantes não existe responsabilidade.
     A Liberdade é o que o homem tem de mais digno e valioso, assim é preciso preservá-la e incrementá-la para que se torne cada vez mais rica e bela. A privação das liberdades que nos são conferidas pelo estado ou pela sociedade, não atinge nossa liberdade interior, que é a verdadeira liberdade.
      Quer na vida Solidária, em comunhão com nossos irmãos, quer na vida Solitária, no profundo meditar sobre o “Eu” e nas nossas relações com o “Outro” e com “Deus”, façamos da Liberdade o centro de nossa Existência.

5 - Solitário e Solidário

    Em sua vida, o homem procura conhecer-se melhor e para isto entra em si mesmo para refletir sobre seu próprio “eu”. Para esta reflexão faz-se necessário a Solidão e, esta precisa de silêncio. Retirar-se para um lugar tranquilo, longe dos barulhos e ruídos da cidade, é importante e ajuda em nossa procura do silêncio para nossa meditação, mas, não é necessário.
    O silêncio de que é necessitamos não é o silêncio exterior que vem do ambiente em que nos encontramos, mas, principalmente o silêncio interior, pensamentos e distrações que ocupam nossa mente e que impedem nossa concentração.
    Se conseguirmos nos livrar de preocupações, fantasias e lembranças de fatos acontecidos, poderemos nos concentrar mesmo se a nossa volta se faça grande barulho, como as propagandas ruidosas, o vozerio de outras pessoas, o ruído provocado pelo trânsito de veículos e outros rumores como acontece nas grandes cidades. Nestas circunstâncias a concentração torna-se mais difícil, porém possível; além do que, sempre é possível ser interrompida por um acontecimento inesperado ou por um estrondo mais forte. Assim é aconselhável a procura de lugares mais tranquilos.
    Tendo conseguido o necessário silêncio, (tanto exterior, quanto interior) o homem entra em si mesmo e começa a refletir, mas, abstraindo das circunstâncias em que vive e desconhecendo a presença do “outro”, o homem encontra em seu “eu” uma realidade muito pobre, voltada para dentro de si e, se prossegue em sua reflexão acaba por encontrar o vazio.
    Para conhecer-se o homem precisa encontrar-se com o “outro”; precisa deixar a solidão e tornar-se solidário. Somente conhecendo o próximo, seu semelhante, é que o homem pode conhecer-se.
    É saindo de si, em direção ao próximo, que o homem se torna solidário e, é na solidariedade que constrói sua própria personalidade.
   A solidariedade não se realiza apenas no conhecimento mútuo entre as pessoas, é preciso participar no existir do próximo; é preciso sentir suas alegrias e sofrimentos, suas angústias e preocupações.
    Ao perceber a existência do próximo, o homem pode permanecer indiferente, não se importando com o que lhe acontece, fecha-se em seu egoísmo, impedindo seu próprio crescimento; pode também, ver no próximo um rival, um concorrente, um adversário e tenta submete-lo a seus desejos e caprichos ou, se deixa dominar pelo outro, em ambos os casos se despersonaliza.   
     O homem torna-se solidário através do diálogo e da ação. Pelo diálogo procura conhecer o outro e deixar-se conhecer pelo outro. Quanto mais profundo e intimo for o diálogo, maior é a possibilidade de um mútuo conhecimento. Pela ação o homem engaja-se com o outro em atividades que tenham objetivos e interesses comuns; a ação participada incrementa a relação de amizade e companheirismo entre os participantes.
      O homem solidário interessa-se pelos planos e projetos dos demais; participa de seus triunfos e fracassos, de suas alegrias e sofrimentos.
      A solidariedade propicia a constituição de comunidades, onde o mais  importante não são os projetos e interesses individuais, mas, aqueles que tragam o progresso e o bem para toda a comunidade.
      Às vezes, porém, o que parece ser uma atividade desenvolvida pela solidariedade, não o é de fato. Muitas vezes a ação executada, inclusive com motivação louvável, pode ser puro ativismo; às vezes, também, pode ter motivos egoístas e perversos. Pessoas há que participam de atividades humanitárias, apenas para tornarem-se confiáveis e simpáticas e assim conseguirem sucesso em seus negócios ou em seus projetos políticos; outras ainda apenas querem conquistar a confiança dos companheiros para depois os influenciarem e os submeterem aos seus caprichos.  
      A ação solidária é transparente e justa, nunca beneficia ou satisfaz interesses particulares. Para evitar os perigos de desvirtuamento na prática da solidariedade, o homem deve recorrer a solidão, para refletir revendo sua atividade e tornando a focalizar o seu “eu”.
      Esta parada para reflexão no silêncio e na solidão é muito importante. É saudável a prática de cursos ou retiros espirituais que levam o homem a ter oportunidade de se conhecer melhor sob a direção de pessoas devidamente preparadas.
      Em nossa reflexão, voltamos a nos encontrar, agora não mais um “eu” vazio e egoisticamente centrado sobre si mesmo, mas um “eu” enriquecido pela nossa prática solidária e pelo nosso encontro com o “outro”.
      Neste encontro, através do diálogo, aprendemos que não somos donos da verdade, aprendemos a ouvir e a respeitar a opinião do “outro”, aprendemos também que não só ajudamos aos demais, mas somos por eles ajudados.
      Em nossa reflexão podemos também rever nossa caminhada, corrigir nossos erros e reformular nossos objetivos. Sendo solidários, ao participar da comunidade, devemos ser desapegados e prestativos. Sempre prontos para atender nossos irmãos em suas necessidades e a eles recorrer quando das nossas, sempre num espírito de amor e doação.
      A existência do homem transcorre entre a Solidão e a Solidariedade. Só quem souber manter o equilíbrio entre esses dois polos é que conseguirá construir uma personalidade equilibrada.

6 - A Criatividade e a Dimensão dos Valores.

      Na realidade defrontamo-nos com os seres que se colocam a nossa frente. Deixando de lado as discussões entre realista, idealista e outras correntes filosóficas sobre a natureza destes entes e, alinhados apenas com a visão do senso comum afirmamos a existência destes seres e com eles a nossa própria existência nesta imensidade que é o Universo.  
     Através de nossa atividade consciente e movidos por nossa vontade podemos e de fato interferimos nesta realidade, na qual estamos imersos, modificando-a e criando novos relacionamentos entre os diversos entes e entre eles e nós próprios. A este fato denominamos criatividade.
      A criatividade depende de nossas faculdades cognitiva e volitiva. Através da criatividade muita coisa é alcançada: novas descobertas, novos remédios, novas ferramentas, novo instrumental para nossas atividades cotidianas, novos meios de comunicação e muito mais. Mas, para que tudo seja realizado, não basta o trabalho de um único homem, é preciso a colaboração de muitos. A criatividade é exercida em comunhão com outros, muito embora, quase sempre apenas um seja o personagem principal e o maior responsável pelo que é realizado. O homem é criativo e sua criatividade contribui decisivamente no dinamismo e no progresso de todo o Universo.
      Neste seu relacionar com o Universo e com os seres nele contidos, ao homem não basta reconhece-los como entes, vai mais além e descobre a existência de valores que podem ser atribuídos aos mesmos. Estes valores podem ser descobertos através da sociedade ou da história ou, podem ser criados.
       Fazendo parte de uma determinada sociedade e de uma determinada era, o indivíduo já encontra na tradição cultural ou nos costumes da sociedade a qual pertence toda uma escala de valores, que pode aceitar ‘in totum’ (que é o que acontece com mais frequência) ou pode aceita-la com reservas. Estes valores que aqui vamos denominar de valores sociais não surgem repentinamente, mas possuem uma dimensão histórica na qual se enraízam e é o resultado de muitos homens que deram sua contribuição, na maioria das vezes anonimamente. Assumida tal escala de valores esta pode se modificar quando do contato com outras tradições ou, ser enriquecida com novos valores.
       Os valores podem ser de diferentes tipos ou espécies. Primeiramente temos aqueles que são considerados a partir de um determinado ser e são atribuídos a partir de observação feita das características deste ser; a estes valores denominamos naturais. Entre os valores que denominamos naturais temos: valores medicinais (certas plantas e outros seres) que podem ser utilizados como remédios; alimentares (frutas, verduras, legumes e certos animais que servem como alimento); para o transporte (animais como os cavalos, os camelos e os burros); de competição (como os cavalos de corrida) e muitos outros.
      Valores artificiais que são colocados sobre os entes por decisão dos homens como os valores pecuniários (quando um determinado ser é valorizado para ser comerciado) e os valores estéticos (quando o que se destaca é a beleza).
      Os valores podem também ter um caráter pessoal e serem conferidos por determinada pessoa e por diferentes motivos, entre estes destacamos os valores afetivos quando aplicados, por exemplo, a um animal de estimação e os valores simbólicos quando nos recordam de algo muito importante de nossa vida, como exemplo o anel de casamento e medalhas conseguidas em competições esportivas.
      Os diferentes valores são relacionados entre si formando um sistema, que escalona os valores de acordo com a importância que lhe é conferida por diferentes pessoas. Cada pessoa possui uma escala diferente de valores e pode acontecer que duas pessoas tenham os mesmos valores, mas sua escala de valores é diferente, porque o que é mais importante para um tem apenas importância secundária para o outro.
       O valor principal de uma escala de valores é aquele que o autor desta escala considera o mais importante. È o valor chave e em torno dele os demais se estruturam. A Escala de valores de uma pessoa é deveras importante, porque é através dela que toda sua vida e suas ações se realizam.
        Os valores que são aceitos e fazem parte do viver de determinada pessoa, quer sejam valores assumidos através do meio social, quer sejam aceitos e influenciados por outros, quer sejam criados por si próprio tornam-se meio pelo qual a realidade e a existência é considerada.
        O criar e o assumir valores somente é possível com um total empenho da pessoa, agindo conscientemente e com total Liberdade.
        A Liberdade somente é conquistada por aqueles que com garra e coragem não desanimam frente aos obstáculos encontrados em seu caminhar e sabem criar uma digna escala de valores que se torne na norma que direcione sua vida na busca de um significado.      

 7- A Relatividade do Bem e do Mal e a Justiça.

    Ao estruturar sua escala de valores o homem sempre o faz em relação ao Bem e ao Mal; ao bem são subordinados todos os valores positivos; ao mal, os negativos, ou seja, os anti-valores.
       O bem e o mal, contudo, são relativos, ou seja, o que é bem para uns é mal para outros. Assim, para um animal de rapina alimentar-se de sua presa é um bem, para a caça é um mal. Nas histórias de quadrinho e nos filmes de aventura, uns são os mocinhos (cavaleiros do bem), outros os bandidos (servidores do mal); quando é um bandido que mata é um assassino e merece ser punido impiedosamente, se é o mocinho que mata, o faz em nome da justiça e seu agir é cantado em prosa e verso como um ato digno de ser exaltado e recompensado.
      No relacionarem-se os homens, muitas vezes surge o conflito porque as respectivas escalas de valores são divergentes. Num âmbito mais amplo, na tradição cristã os valores são muitas vezes similares outras divergentes daqueles valores ensinados e propagados pelo confucionismo, taoísmo, budismo, islamismo e outras tradições. Por exemplo, a doutrina da não violência que é ensinada quase universalmente, tem sua radicalidade na tradição jainista e, é totalmente esquecida nas guerras religiosas, quando se mata em nome da religião e se justifica a matança com argumentos sem sentido e ridículos.
       O bem e o mal são relativos, sendo que os atos praticados pelos homens são bons ou maus dependendo da perspectiva de quem os pratica ou os considera. O que determina o valor real e absoluto de determinado ato ou, o seu desvalor é a Justiça.
       A justiça muitas vezes é interpretada parcial e equivocadamente, de acordo com os interesses particulares; mas aqui não temos uma verdadeira justiça, apenas um arremedo de justiça.
       A justiça para ser real e verdadeira não transige nem com indevida severidade, nem com falsa misericórdia. A Justiça reconhece a verdade de um ato ou de um acontecimento, independentemente de ser bom ou mal; de servir aos interesses de poderosos ou de excluídos.
       Por não ser partidária, nem se deixar corromper a Justiça em sua afirmação da Verdade mostra-nos a realidade livre de seus disfarces e por isso deve tornar-se luz a iluminar as ações e a vida de cada homem e de toda a humanidade.

8 - O Construir da Personalidade.

      Em nossa procura pela essência, no início desta nossa jornada, deixamos de considerar a essência obtida através da abstração, por ser universal e não aplicável aos seres concretos e singulares. Identificamos a essência concreta de um ser humano a sua personalidade e afirmamos sua não existência como um ser determinado e totalmente realizado, mas que deveria ser construída passo a passo pelo próprio homem durante sua vida. Assim, a essência, ou melhor, a personalidade de cada indivíduo, dotada de um dinamismo criador iria se concretizando e adquirindo consistência, distinguindo-o dos outros seres humanos e tornando-o único em sua realização pessoal.
      Neste auto realizar-se é importante o estar consciente de sua própria existência e de suas limitações e de seus condicionamentos, quer em relação ao próprio organismo; quer em relação ao meio no qual está inserido. Muito importante é conscientizar-se de suas relações com outros seres que lhe são semelhantes, pois sem este relacionamento com o(s) outro(s), suas ações ou perderiam significado ou não encontrariam eco ou resposta, tornando-se estéreis.
       Para a construção de sua própria personalidade, seus atos além de conscientes deveriam ser livres. Só a Liberdade pode criar a Pessoa; mas, como a Liberdade é limitada e condicionada, como vimos anteriormente, os atos do indivíduo somente contribuem para a estruturação da própria personalidade, na medida em que são livres.
       No agir livremente, o homem torna-se Responsável. Com relação a cada ato particular esta responsabilidade é relativa apenas ao que no referido ato se deve a sua liberdade, no que se deve aos condicionamentos, não há responsabilidade; com relação a sua Pessoa, sua responsabilidade é total, porque esta é construída apenas com o seu agir livre. O homem é responsável pela pessoa que ele mesmo criou perante o(s) outro(s) e perante a divindade.
      A Liberdade que deve ser conquistada com muita luta e persistência durante toda a vida é o que mais enobrece e dignifica o homem, mas acarreta também uma enorme responsabilidade. A Responsabilidade com relação a si mesmo, a sua  própria pessoa.

      No construir sua personalidade, o homem deve levar em consideração a escala de valores que adotou. Deve então escolher metas e objetivos para sua vida; estas podem ser particulares, referentes a cada ação a ser praticada ou, geral referente a sua vida como um todo.
      Quando se age, sempre se tem um objetivo em mente, por mais simples e corriqueira seja esta ação. Assim, alimenta-se para vencer a fome, veste-se para combater o frio ou para esconder a nudez, tomam-se remédios para combater enfermidades, etc. Com referência a atos mais complexos pratica-se esporte para melhorar seu desempenho físico, desloca-se para conhecer novos lugares ou para encontrar parentes e amigos, assiste-se televisão em busca de informação, distração ou novos conhecimentos, etc.
      Mais claro podemos entender estes objetivos em atividades que requeiram continuidade e que objetivem algo mais concreto para a constituição da personalidade, entre outras podemos elencar a frequência a escola ou a atividades de cunho religioso ou cultural, ou ainda, o cumprimento de deveres políticos ou sociais.
       Todos estes pequenos objetivos se unem e se estruturam tendo em vista a um ideal mais amplo e geral que é a própria auto-realização, a própria afirmação como uma pessoa entre outras pessoas.

       São diversos os modos e caminhos pelo qual o homem procura afirmar-se, elenquemos os principais:

1)    O prazer, quando o mais importante é encontrar satisfação nos mais diversos prazeres, sejam lícitos ou ilícitos.

2)     O poder, quando o que se quer é alcançar condições para mandar, ou mesmo subjugar, a outros para que se submetam a seus desejos e caprichos.

3)    O ter, quando a procura da posse e dos bens materiais (principalmente o acúmulo do dinheiro) dirige sua vida para conseguir tudo o que almejam.

4)    A glória, quando o que se procura é ser reconhecido e ovacionado pelos outros, é o desejo de estar sempre no centro das atenções, não importando se merecidamente, ou não.

5)    A ética, quando se procura cultivar valores éticos e morais, tais como a honestidade e a coerência, para servirem de exemplo e poderem orientar os outros para uma vida voltado para o que é correto e bom.

6)    A religião, quando se assume valores religiosos, deixando-se iluminar pelos ensinamentos da religião que assumiu procurando atingir um ideal de santidade.
       
  Estes são alguns dos modos pelos quais se procura a auto-realização, outros existem. Os homens podem mudar seu modo de agir; assim quem passa boa parte de sua existência procurando a posse de bens materiais, pode por motivos os mais variados passar a dirigi-la na busca de bens espirituais. Estes modos também podem ser combinados entre si, assim existem pessoas que querem possuir mais dinheiro para usá-lo na satisfação de sua busca pelo prazer.
        De tudo o que consideramos acima, o importante é que todos querem (consciente ou inconscientemente) alcançar a auto-realização. Porém, muitos obstáculos surgem, a vontade de outros que conflita com a própria, as leis e costumes do estado e da sociedade que muitas vezes impedem a realização do que se almejam, os desastres que acontecem inoportunamente, as doenças e enfermidades e, sobretudo a morte.
        A morte que destrói nosso organismo, (tanto física como psiquicamente) acontece e é inevitável, mas, não é benvinda. O estoico, Marco Aurélio, imperador e filósofo nos diz que tudo devemos receber com amor, inclusive a própria morte. Será que existem homens que seguem este ensinamento?
         O homem não quer morrer, muitos foram os que procuraram o elixir da longa vida, assim os taoistas dedicaram muito tempo procurando (inclusive utilizando da alquimia) alcançarem a imortalidade corporal; hoje, a ciência procura prolongar cada vez mais os dias da existência humana e, há até quem diga que no futuro todas as doenças encontrarão seus antídotos e a morte não mais existirá. Mais frequentes são aqueles, pertencentes a diversas tradições religiosas que esperam após a morte serem reabsorvidos na divindade ou continuarem a existir num mundo, semelhante ao nosso, mas onde não exista o mal. Numa terra fantástica, onde irá correr leite e mel.
         Outros querem permanecer vivos em suas obras ou que elas sejam continuadas por seus parentes, amigos e discípulos. Pensadores, cientistas, artistas, heróis, santos continuam vivos e sua influência hoje, as vezes é maior do que quando viviam.
         Não, ninguém quer morrer, nem aqueles que se sacrificam por um ideal ou por amor, como os mártires do cristianismo ou os homens bombas mulçumanos (deixam-se matar, mas seu objetivo não é a morte); nem os suicidas, estes o fazem ou por desespero que lhe provocam desequilíbrio psíquico ou, para fugir a sofrimento insuportável ou ainda, por ser a única maneira que encontra para se afirmar. Nunca a razão é a própria morte.
         A morte, embora inevitável, é um acontecimento ilógico e imoral que interrompe não só a vida como todos os projetos e os sonhos de quem morre. Assim podemos afirmar que o homem não é um “ser-para-a-morte”, como diz Heidegger, mas sim “Um-ser-para-a-vida”.         

9  - A Presença de quem está Ausente – a Saudades”.

“A condição metafísica da Saudade é a ausência, nas”.
 Suas mais diversas formas, com especial relevo a sua
forma suma e decisiva, a morte.”( Afonso Botelho)

     Quando evocamos a memória de alguém para nós muito amado, sua presença se faz sentir, ainda com mais intensidade do que se estivesse vivo. A morte não separa as pessoas que se amam, apenas inicia-se uma relação diferente da que tínhamos antes; a visão de sua aparência corporal se desfaz, mas sua pessoa com todas as suas características mais íntimas e em seu relacionamento conosco permanece. Acreditamos que continua a viver, embora em outra dimensão e diferentemente do modo com que vivera até então e esperamos poder reencontrar a própria vida no futuro.
      Real ou simplesmente imaginário, é este o sentimento que a Saudade propicia para que nosso relacionamento não se esgote: podemos nos recordar de acontecimentos passados, que nos parecem se repetirem; podemos também rezar pelo falecido, desejando que seja feliz e pedindo que nos acompanhe e nos ajude em nossas tribulações; podemos ainda esperar que nossa separação seja passageira e possamos reiniciar o nosso diálogo interrompido por sua morte.
       Aquele que morreu, quer seja pela recordação que temos, quer pelo muito que aprendemos em nossa convivência, quer pelas obras que deixou continua a influenciar em nossa vida. Especial atenção devemos devotar a objetos que usava, músicas que gostava de ouvir, determinados alimentos que gostava de saborear e muitas outras coisas que se transformam para nos em “sacramentos” que dele nos recordam. Quanto maior e mais íntimo foi nosso relacionamento, mais sua presença irá se fazer sentir e permanecer conosco.
      Não só pessoas com quem convivemos em nosso cotidiano, mas outras que às vezes nem chegamos a conhecer pessoalmente podem tornarem-se presentes e exercerem profunda influência em nossas decisões e em nosso viver. Nosso contato com as mesmas foi através de suas obras, da “mídia” ou da palavra de ouras pessoas. O que sobre elas tomamos conhecimento causa-nos admiração e, às vezes mesmo uma profunda simpatia. Estas pessoas, se bem que ausentes (às vezes existiram muitos séculos no passado) tornam-se presentes em nossas vidas.
       Dentre aqueles que influenciam na vida de pessoas que vivem atualmente, embora tenha vivido no passado, destaque especial cabe a São Francisco de Assis. O pobrezinho de Assis, ao contrario de outros santos e homens ilustres que se destacaram, não só causa respeito e admiração, mas, provoca a paixão entre seus seguidores. Os franciscanos e outros mais são completamente apaixonados por São Francisco.
        A paixão que Francisco provoca por suas ações, sua coerência e sua vida é tal, que a pessoa passa a viver em função do santo de Assis, que passa a ser seu exemplo e o centro de sua vida. Ser franciscano é, sobretudo ser discípulo de Cristo, sob a ótica de Francisco; é amar a Francisco e a tudo que lhe diz respeito, é tornar o ideal de vida de Francisco, seu próprio ideal. Esta entrega total a Francisco não despersonaliza o discípulo, pois permite que este siga e imite Francisco de um modo todo pessoal e, realize o ideal franciscano em sua própria vida, mantendo sua própria escala de valores, mas, adaptando-a a escala de valores franciscanos. Similarmente a Francisco, Buda e Maomé também cativaram seus seguidores de tal forma a deixarem-nos totalmente apaixonados por eles. 
        Mas nem mesmo a influência de Francisco, Buda e Maomé foi tão grande quanto a influência de Cristo. Influência exercida não somente com referência a seus discípulos, mas até mesmo também com relação aos seus adversários, embora, neste caso negativamente. Em lugar do amor, o ódio. Ninguém consegue permanecer livre da influência do “Filho do Homem”.
        Cristo atrai por seus ensinamentos, pelas suas ações (milagres), pela sua vida e principalmente por sua morte. Ninguém deu testemunho de maior amor do que Cristo em sua Morte de Cruz.
         Importante é se destacar que Cristo permanece presente, não só no amor que dedica e que é testemunhado por seus discípulos e seguidores, mas também Sacramentalmente.
         Por sua presença sacramental nos diversos sacramentos, principalmente na Eucaristia a presença de Cristo torna-se visível para os que creem.
         Este se fazer presente somente é constatado pela Fé, a Razão mostra-nos não ser impossível, mas só a Fé a torna presente. Estamos perante o mistério da presença sacramental de Cristo e, da presença de quem está ausente e, neste caso quem nos ilumina é a Saudade, assim como no anterior é a Fé.
         Não nos esqueçamos de que Justiça, Fé, Esperança, Caridade e Saudades são virtudes que dignificam o homem.
  
10. - Dos Tempos Primordiais aos Tempos Escatológicos.

     Nossa jornada caminha para seu final, para seu apogeu. Conscientes da imensidade do Universo em que vivemos, perguntamos qual sua origem? Qual seu destino?
       Foram muitas as hipóteses aventadas para responder a essas perguntas, mas ainda permanece a dúvida. Procuremos coincidir com este dinamismo evolutivo e criador que o caracteriza o Universo, com o “élan vital” de que nos fala Bérgson em busca do “ponto ômega”, sua meta e completa realização como nos ensina Teilhard du Chardin.
       Quando as hipóteses da ciência e da filosofia falham em elucidar as origens do Universo, a Mitologia se encarrega de nos apresentar diversos mitos (inclusive o mito pseudocientífico do “Big Bang”) que utilizando imaginação poética e fantástica nos descrevem os tempos primordiais.
       Deixemo-nos levar pelas asas das Saudades para penetrarmos nos mistérios da origem e do destino final do homem e do Universo.
      A Saudade, sentimento característico da alma luso-brasileira, segundo Pascoaes é a própria alma universal; assim, pelo desejo a saudade é esperança e pela dor lembrança. Para Pascoaes o Universo é a expressão cósmica da Saudade.
      Segundo Afonso Botelho para as saudades o passado vale tanto como o futuro, já que, na saudade, um e outro se acordam ou eliminam, devido ao seu poder convergente, que exclui qualquer interferência do tempo exterior ou heterogêneo.
      É ainda o mesmo pensador português que nos ensina que a memória de que a saudade se alimenta não é reminiscência nem rememoração, não é memória reprodutora do finito ou do passado, mas sim memória originária ou memória da unidade originária do ser ou memória do Éden, que reflete o infinito e a compresença dos seres  no passado, presente e futuro, memória criacionista que conserva e cria, sem Ter por morto o que continua vivo, pelo que, para ela, não faz sentido a compartimentação mecânica do tempo, já que passado , presente e futuro estão igualmente envolvidos e encontram a sua unidade dinâmica da dialética infinita da saudades.


     Embalados pelas Saudades interrompamos nossa jornada, ela nos leva a lugar nenhum, mas aponta o Eterno.